Hatikvah

Começo as minhas crónicas no Metrónomo com um pedido de desculpas aos leitores e ao André Tavares Moreira, há muito que prometi escrever sobre Israel e Gaza, mas um bloqueio tem se apoderado de mim e impediu, até este momento, a realização de uma crónica que eu achasse suficientemente digna do tema. Confesso, sou obcecado com este conflito, leio compulsivamente a imprensa Israelita, visitei Israel e a Cisjordânia sozinho em 2018, sou proprietário de uma bandeira da Palestina e não uma de Portugal, estudei as origens ideológicas do radicalismo Islâmico sob a alçada de uma negociadora do tratado de Oslo (Kirsten Schulze) e num passado recente, acabei na contra capa de um jornal por um confronto (por escrito) com o Embaixador Israelita em Portugal, o Sr. Raphael Gamzou.

O título deste artigo é a palavra para esperança em Hebreu e nome do hino nacional de Israel. Vou me dar ao luxo de expropriar (verbo que Israel conhece bem) esta palavra. Começo com esperança porque foi a principal vítima da minha exposição excessiva à imprensa Israelita, o grande travão que me impediu de escrever foi mesmo esse: eu não tenho esperança.

Iniciemos então um exercício conjunto, de forma que o leitor – constando os mesmos factos que eu – esteja numa posição em que consiga explicar aquilo que escapa a minha compreensão. Dizia Clausewitz, que quando se analisa um conflito armado entre duas partes tem de se considerar três coisas: o propósito, o objectivo e os meios. O ponto de partida nesta crónica será a descrição do alvo. Contextualizemos o alvo, Gaza.

A Faixa de Gaza ocupa um território um pouco menor que o município de Vila Real (pop. 51 mil), tem um formato rectangular (daí ser uma faixa), que em algumas zonas não chega aos 6 quilómetros de largura, ou seja, mais ou menos o cumprimento da Avenida da Boavista no Porto ou 4 avenidas da Liberdade em Lisboa. Neste misero rectângulo vivem 2 milhões de habitantes, que equivale aos 7 maiores municípios de Portugal juntos. Com o acesso ao mar barrado, 6 horas de eletricidade por dia, ausência de recursos hídricos e terra arável, esses 2 milhões de habitantes vivem em absoluta dependência do exterior. Convém referir que o acesso a esse exterior está impedido pelo Egipto (que também merece reflexão) e Israel desde a eleição democrática do movimento Islamista Hamas em 2007.

O Objectivo

Qual o objectivo de Israel em Gaza? Em 1992, o então primeiro-ministro e futuro premio Nobel da Paz Yitzhak Rabin disse-o claramente “eu desejo que a faixa de Gaza se afunde no mar, mas não encontro tal solução”. Como estas palavras foram proferidas há quase 30 anos e o senhor Rabin foi assassinado por um Sionista radical há quase 25 (já lá chegamos) podemos dar o benefício da duvida e considerar declarações mais recentes.

Olhemos então para o que o Sr. Embaixador Gamzou diz em entrevista ao Diário de Notícias há menos de um mês “Se Portugal – Deus queira que não – fosse atacado por uma organização terrorista seria de esperar que o vosso governo retaliasse para proteger os cidadãos.” Fala também em “dissuasão”, utilizaremos mais tarde este critério para avaliar os resultados obtidos.

Os Meios

Quais os meios que Israel usa para combater este feroz adversário, fechado num espaço do tamanho da capital do Alto Douro? Numa primeira fase, Israel retirou os seus colonatos do território e construiu toda a infraestrutura que permitiu o isolamento total de Gaza. Apoiou de maneira inteligente diferentes fações políticas armadas em Gaza e deixou que estas iniciassem uma guerra civil que eliminou por completo a Fatah, partido que controla a Cisjordânia, assim garantindo a separação do movimento pela independência da Palestina e o desprestigio internacional dessa mesma causa.

Sim, leu bem, Israel é responsável pelo movimento Hamas. E como, pergunta o leitor? A resposta é simples, primeiro, com o reconhecimento do estado de Israel por parte da Fatah (condição fundamental para os acordos de Oslo), a população de Gaza sentiu que fez uma enorme concessão e não ganhou nada, isto porque os Israelitas violaram os termos desses acordos de forma sistemática sem sofrer por isso sanções da parte da comunidade internacional. Uma vez garantido o desprestigio da Fatah, e numa serie de decisões ruinosas que recuso acreditar serem fruto de negligência, pois, qualquer pessoa minimamente instruída no que toca a Islamismo Militante poderia prever este resultado, Israel começou a fabricar mártires com uma táctica de decapitação. Israel eliminou de forma “extrajudicial” a liderança armada do Hamas (Ahmed Yassin, Yahya Ayash) e desta forma foi sinalizando para a população de Gaza que estes mártires e o seu movimento tinham a mensagem e a metodologia alternativa ao fracasso da Fatah. Pelo meio morreu Arafat, e Israel deteve (até este momento) Marwan Barghouti – aquele que seria o seu sucessor mais evidente e que podia representar os Palestinianos em negociações de paz.

Uma vez assegurado o caos dentro da jaula montada pelo estado de Israel, começa a segunda fase com as chamadas “operações” de Israel em Gaza. Este continua a ser o meio que Israel usa em Gaza. O termo “operação” é utilizado de maneira muito inteligente – dá a ideia de uma acção cirúrgica, rigorosa, um procedimento que elimina uma parte para preservar o todo. Consideremos então os resultados:

  • 2008: Operação “Chumbo fundido”, mais de 1000 mortes, 75% das quais civis, contra 13 mortes Israelitas, 3 dos quais civis. Um bónus desta operação que certamente desviou muita gente do extremismo religioso foram 50 mil desalojados e 5 mil feridos, no prazo de 3 semanas. Cirúrgico e rigoroso, como se pode ver.
  • 2012: Operação “Pilar Defensivo”, cerca de 100 civis mortos em Gaza, contra 2 em Israel, mais uma centena de famílias desalojadas.
  • 2014: Operação “Margem Protectora”, mais de 1000 civis mortos em Gaza contra 6 em Israel, mais uns milhares de desalojados e feridos.
  • 2021: A festa continua, e, no entanto, o cancro que Israel afirma querer remover do corpo que é a faixa de Gaza, mantem-se firmemente no poder.

Com os meios de Israel descritos em algum detalhe podemos então constar que ao longo dos últimos 20 anos, o único progresso alcançado por Israel foi um aumento no rácio de civis mortos e desalojados em Gaza face aos seus próprios cidadãos, pouca coisa considerando os biliões de dólares que Israel investe neste conflito, e os autênticos oceanos de propaganda securitária e paranoica que os seus lideres corruptos (A família de Ariel Sharon recebeu subornos, Ehud Olmert foi preso por corrupção, e Netanyahu para lá caminha) descarregam sobre o seu eleitorado e a comunidade Judaica internacional.

Perante isto, o que pensar? Pode se falar em dissuasão quando Israel mata desmedidamente de 3 em 3 anos? Pode se falar na perceção dos Palestinianos “que o extremismo não os leva a uma vida melhor”, outra pérola da entrevista do Sr. Embaixador Gamzou, se o movimento Hamas se mantém firmemente no poder? Parece-me pouco provável que um país hiperdesenvolvido, onde toda a população masculina e feminina serviu no exército e onde a obsessão com conflito armado é quase uma religião do Estado, possa ter uma liderança negligente ao ponto de falhar os seus objectivos, com custos humanos e financeiros elevadíssimos, durante duas décadas.

O Propósito

Para decifrar a peça final desta análise, o propósito, recorro às muito esclarecedoras declarações feitas por algumas das principais figuras políticas de Israel, ao longo dos últimos anos e particularmente durante as eleições. Começo por admitir, mesmo partindo de expectativas baixíssimas, achei extraordinário que a única força capaz de depor Netanyahu foi o Yamina (literalmente “para a direita” na língua local), partido de reacionários ultrafundamentalistas liderado por um conhecido e dedicado racista, Naftali Bennett.

Para o senhor Benett e para outras figuras que recomendo ao leitor pesquisar: Ayelet Shaked, Avigdor Lieberman, Benny Gantz e Bezalel Smotrich, o objectivo e o propósito do conflito com Gaza são claros. Deixo aqui algumas declarações sóbrias destes membros do Knesset e ex-ministros. Começando por Benett “Já matei muitos Árabes, não há problema nenhum com isso.”, Shaked “Eles [Palestinianos] são todos combatentes inimigos, e o sangue deles ficará nas nossas mãos.”, Lieberman “Com os nossos opositores não há nada a fazer, temos de pegar num machado e decapitar.” Smotrich “Eles [Palestinianos] podem ir para a Europa ajudar com a baixa natalidade ou para o mundo Árabe que tem o ISIS por toda a parte” ou o moderado Benny Gantz que orgulhosamente fez um vídeo de campanha a gabar-se de ter levado “partes de Gaza de volta à idade da pedra”.

Os partidos destes, sendo que Shaked faz parte do mesmo partido que Bennett, representam com o Likud de Netanyahu quase 50% do eleitorado, se juntarmos a isto o partido Ortodoxo Shas e o Nova Esperança de Gideon Sa’ar (ex-ministro Likud e ultra nacionalista) chegamos a dois terços. É com desalento que digo a todos aqueles que exaltam as credenciais democráticas de Israel, a maior parte do povo de Israel tem premiado os políticos que promovem ou executam esta agenda política. Pior, esta premiação não foi nenhum fenómeno raro, o eleitor Israelita legitimou estas ideologias em 4 eleições nos últimos 2 anos.

E é por tudo isto que acabam de ler, que regresso à afirmação com que dei início a esta crónica: eu não tenho esperança. Eu não tenho esperança enquanto continuar a ver sonhadores da solução de dois estados. Não tenho esperança enquanto vejo outros tantos a insistir de forma indulgente na falsa equivalência dos “dois lados”. Não tenho esperança, enquanto Israel continuar a plantar propagandeiros em todos os órgãos de comunicação social a fundir o anti-sionismo com o anti-semitismo.

Só terei esperança no dia em que deixar de ser controverso repetir aquilo que os próprios representantes eleitos do povo de Israel declaram alto e a bom som: O propósito da guerra em Gaza é a eliminação sistemática do povo Palestiniano.

Não se preocupe caro leitor, vou aguardar a chegada desse dia no conforto da minha casa. Só queria que os Palestinianos tivessem a mesma sorte.

© Anas Baba / AFP
David Moreira

Portuense dedicado, aspirante a historiador, eco-ansioso, anti-conformista, irrequieto, insatisfeito, anarcó-síndicó-socialistó-liberal, Humanista.

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