Por uma Social-Democracia Portuguesa: Reflexões sobre o Passado, Presente e Futuro do PPD

Entre os militantes, apoiantes e simpatizantes do Partido Social Democrata, existe um fantasma permanente, que criou um certo mito sebastianista à volta de si próprio. Todos dizem querer perpetuar o legado de Francisco Sá Carneiro, até aqueles que já saíram do partido para criar um novo, embora poucos saibam explicitar o que é que isso de facto significa, escondendo-se atrás dos chavões da praxe. Eu próprio já fui culpado de alimentar essa mesma tendência messiânica, sabendo pouco ou nada da figura à qual apelava. 

Há cerca de pouco mais de um ano, comprei um livro de Sá Carneiro, Por uma Social-Democracia Portuguesa*, com a intenção de me redimir do pecado do messianismo, um projeto que acabei por cumprir há pouco mais de um mês. Este texto engloba não só os meus pensamentos sobre o conteúdo do livro em si, mas também uma reflexão sobre o que esse mesmo conteúdo nos indica sobre o futuro mais próximo do partido. 

Por uma Social-Democracia Portuguesa é uma compilação de discursos, entrevistas e uma conferência de imprensa de Francisco Sá Carneiro entre os meses de Junho de 1974 e Fevereiro de 1975. Como é realçado no prefácio da 2ª edição, da autoria de Marcelo Rebelo de Sousa, que é merecedor de uma leitura só por si, esta publicação “retrata o pensamento do líder do PPD (…) na primeira fase do PREC” (p. 11). A primeira edição desta obra apareceu em Março de 1975, ainda antes da realização das primeiras eleições livres pós 25 de Abril. 

É inequívoco que um dos objetivos desta publicação foi a tentativa de explicitar as fundações ideológicas do PPD, e justificar a sua existência num mapa ideológico português onde o “centro” se encontrava à volta de um Partido Socialista abertamente marxista, com um Partido Comunista de índole leninista à sua esquerda, e um Centro Democrático Social de propensão democrata-cristã à sua direita. Sá Carneiro fazia tudo para “se sentar a mesa, acotovela à direita, acotovela à esquerda, não há espaço para ele, vai ter de sentar-se no chão”. No entanto, este livro também acaba por ser uma documentação da evolução das posições tomadas por Sá Carneiro, e por extensão, pelo PPD como um todo, perante a volatilidade proporcionada pela 1ª fase do PREC. 

Tal como é sublinhado no prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa, Sá Carneiro parece navegar a favor da corrente crescentemente “esquerdista” imposta pelo MFA à medida que o PREC avança durante o ano de 1974, até cerca de Janeiro-Fevereiro de 1975, quando se verifica uma rutura clara com o rumo tomado pela revolução e pelos que se dizem seus líderes, verificada principalmente no discurso no comício de Aveiro. Sá Carneiro afirma que um “partido conservador (…) em termos europeus” (p. 127) deve poder integrar o espectro político português, tanto na entrevista ao Diário de Notícias de 13 de Junho de 1974, como na concedida ao Povo Livre em Agosto do mesmo ano, mas nunca se manifesta abertamente contra as ilegalizações da direita política que ocorrem após o fiasco da manifestação da “maioria silenciosa”, parecendo até aludir favoravelmente a tais procedimentos quando defende a proibição dos “movimentos neofascistas” (p. 33), no discurso do primeiro comício do PPD. Neste mesmo discurso, Sá Carneiro utiliza abertamente jargão marxista, como quando afirma que o partido é inimigo da “alienação capitalista” (p. 37). No mesmo sopro em que diz que a constituição portuguesa deve defender a “liberdade política e o pluralismo” (p. 36), também declara que esta deve estabelecer o “caminho de socialismo democrático” (p. 37), que é obviamente incompatível com a pluralidade que inclua partidos “não-socialista”, e que estes possam governar em pé de igualdade com os partidos “socialistas”. 

É aqui que se encontram as fontes das minhas maiores reticências com os ideias de Sá Carneiro, tal como são apresentados em Por uma Social-Democracia Portuguesa. Francisco Sá Carneiro parece “acreditar” que a social-democracia é o caminho em direção ao “socialismo em liberdade” ou “socialismo democrático”, expressões utilizadas por diversas vezes ao longo do livro, como por exemplo nas páginas 244-245 e 260-261, aparentando ter o mesmo significado, e não um fim por si só, como é frequentemente conceptualizado desde os anos 50 do século XX. Também aparenta aceitar tacitamente que a revolução foi feita para implantar o “socialismo” em Portugal, embora com a prorrogativa de que este deve ser legitimado por eleições, e não forçado pelas elites políticas e pelos militares revolucionários (p. 158-160). 

Poder-se-á argumentar que isto é apenas mais uma das cedências forçadas pelo PREC, algo que me parece razoável, até certo ponto, tendo em consideração o que Sá Carneiro fez nos anos seguintes. No entanto, não posso não considerar que esta é claramente a cedência com mais consequências a médio-longo prazo, ao distorcer o significado que a social-democracia tinha, não só para o fundador do PPD, mas para o partido como um todo. 

Pesando o descrito anteriormente, existem uma variedade de assuntos nos quais Sá Carneiro não se deixa levar pelos ventos revolucionários, e que importam mencionar, não só pela sua importância para a construção do Portugal democrático, como também pela coragem que foi necessária para a tomada de algumas destas posições. 

  1. Os plenos direitos eleitorais tanto dos emigrantes (p. 211 e 233, por exemplo), como dos analfabetos (p. 233), constituem pilares crucias de qualquer democracia liberal. 
  2. A oposição ao adiamento das primeiras eleições (p. 247-248 e 258-259, por exemplo), tal como chegou a ser defendido pelo PCP, e a defesa da realização de eleições autárquicas o quanto antes (p. 246), fortaleceram as raízes democráticas nascentes. 
  3. Sá Carneiro também se urge contra as nacionalizações de larga escala antes das eleições para a assembleia constituinte, pois estas não constavam do “Programa das Forças Armadas (…) do Movimento e do Governo” (p. 161), o que certamente contribuiu, embora de maneira reduzida, para a mitigação das crispações crescente no seio da sociedade portuguesa. 

No entanto, os posicionamentos mais corajosos da parte de Francisco Sá Carneiro, tendo em consideração o contexto pós revolução dos cravos, são indiscutivelmente a defesa da pluralidade sindical (p. 228-229 e 278-279, por exemplo) e oposição aos movimentos unitários (p. 149), incompatíveis com a pluralidade democrática, e a manifestação da intenção de integrar de Portugal na CEE e no mercado comum, como é espelhado no título “Somos um partido da Europa e da Europa do Mercado Comum”, escolhido para a entrevista publicada no Jornal de Notícias de 26 e 27 de Outubro de 1974 – algo que afastou definitivamente Portugal do bloco soviético, ao contrário do que era pretendido pelo PCP, e pelas hostes mais radicais do meio revolucionário. Estas são demonstrações claras do carácter e da espinha dorsal de Sá Carneiro, que ajudam a explicar a sua canonização no panteão mitológico do PSD. 

Quando concluí a leitura de Por uma Social-Democracia Portuguesa, as semelhanças do contexto em que esta compilação, e os textos que a compõem, foi elaborada com a situação presente saltaram-me distintamente à vista. Tal como em 1974-1975, temos um Partido Socialista que, pelo menos em termos retóricos, anda de mãos dadas com o Partido Comunista (e o Bloco de Esquerda), de tal forma que me parece que as gerações futuras nos vão recriminar por não existir uma recriação do 1º de Maio de 1974 com António Costa e Jerónimo de Sousa. 

Embora o PS do presente não se apresente como “marxista”, apresenta-se abertamente como um partido de “esquerda”, bastando relembrar as palavras do atual primeiro-ministro na conclusão do debate do orçamento de estado para 2022: “Nasci à esquerda, fui criado à esquerda e a esquerda é a minha família”. 

Como tal, e tal como Francisco Sá Carneiro afirmou em 1974, o PPD/PSD não é um “partido liberal” (p. 104), uma afirmação repetida recentemente pelo atual presidente do PPD/PSD, devendo distanciar-se do PCP e PS adotando uma “linha progressista não marxista” (p. 179), aceitando a “propriedade privada, a iniciativa privada, o incremento de riqueza, uma economia de mercado, mas com limites impostos pelo poder político, para que o crescimento económico seja posto ao serviço da comunidade e para que o rendimento seja distribuído equitativamente por todos os membros da coletividade” (p. 139), organizando a sociedade “a partir da pessoa e para a pessoa, com os seus direitos e liberdade inalienáveis” (p. 139), sendo-lhe garantida a possibilidade de obter os “meios necessários para a sua realização pessoal e familiar” (p. 179). 

Algumas das propostas e análises de Sá Carneiro aparecem ainda como surpreendentemente atuais, como é o caso da resposta à pergunta sobre o sistema de saúde nas páginas 263-264, ou a discussão dos perigos da incerteza e desconfiança generalizadas, que se encontra nas páginas 160-161. 

Em termos práticos e simplificados, a linha que deve ser seguida, no meu ver, resume a Social-Democracia a uma combinação de um intervencionismo Keynesiano responsável, com foco na manutenção do pleno emprego e no crescimento a longo-prazo, a nível económico, e de um progressismo moderado, em que se tente harmonizar as correntes mais recentes com os setores mais conservadores da população, na esfera social. 

A adoção deste prisma implica a aproximação do PPD/PSD ao “núcleo” do espectro político, de maneira a tentar ganhar o eleitorado puramente de centro, e o máximo possível dos eleitorados de centro-esquerda, deixado a mercê pelo PS, e de centro-direita. Mas isto deve acontecer rejeitando “totalmente a ideia do partido de elite, condutor de massas pouco esclarecidas ou manipuladas” (p. 278), e sem “dogmatismos nem preconceitos, rejeitando o totalitarismo de direita ou esquerda” (p. 179). 

O pior que poderia acontecer ao Partido Social-Democrata, e ao país como um todo, seria o regresso do primeiro ao centro-direita, à procura de uma coligação com a direita moderada, deixando o segundo ainda mais polarizado e fragmentado do que já se encontra atualmente, e, potencialmente, numa situação ingovernável. 


*Francisco Sá Carneiro. (2010). Por uma
Social-Democracia Portuguesa
(2da ed.). Dom Quixote

© Renascença
Diogo Lima

Estudante de economia, com ambições de um dia ser professor de macroeconomia. Tem a mania que entende melhor que ninguém a Teoria Geral, que está a ler há 3 anos. Gosta de mandar uns soundbytes sobre política, tennis, futebol, F1 e história. É maluco por Star Wars desde que se lembra, ao ponto de ir ver o mesmo filme ao cinema mais de uma vez, independentemente da qualidade.

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