“Sem memória não há futuro”, lê-se à saída do Museu do Aljube, em Lisboa, onde está documentada a história de resistência e luta pela liberdade de muitos portugueses durante os 48 anos de ditadura fascista.
Logo aqui, dois arrepios surgem. O primeiro prende-se com os 47 anos da nossa democracia na altura em que surgem os maiores desafios à sua existência. O segundo deve-se à dificuldade crescente de preservar a memória histórica à medida que (1) a nossa democracia segue o caminho de polarização de tantas outras e (2) as vozes daqueles que viveram a censura, a polícia política, a tortura, e o imperialismo estatal vão ficando à margem da sociedade.
Num ato de memória histórica, e com alguma culpa por não ter conseguido descer a Avenida, comecei este 25 de Abril a ver o documentário “As Armas e o Povo” (disponível integralmente e em HD aqui, por obra da Cinemateca Portuguesa). Em dois artigos, abordarei duas frases que me marcaram particularmente, à luz do que sabemos hoje.
Caiu o fascismo, mas a exploração capitalista continua
Já em Alvalade, um dos discursos comemorativos do 1º de Maio de 1974 (aqui) lia que “caiu o fascismo, mas os problemas não ficaram resolvidos, pois a exploração capitalista continua”.
Estive perto de esconder a referência ao capitalismo, e não quero ir por aí, pois acredito ser uma conversa para a qual ainda não estamos preparados. Criticar o capitalismo de forma explícita hoje em dia acaba por levar a uma conversa sobre o comunismo e os suspeitos do costume.
Mas consideremos aquilo que a revolução nos trouxe, e aquilo que ainda hoje ameaça a democracia e é diariamente usado como arma de arremesso por extremistas.
A consequência primária está ligada, naturalmente, à pluralidade política e social. Desde partidos da Democracia Cristã, a Partidos de Unidade Operária, desde Movimentos de Reformados e Pensionistas, a Partidos pelos Animais e Natureza. Temos escolha, muita escolha, e podemos militar por aquilo que quisermos. Da mesma forma, a imprensa hoje vai desde o Avante ao Diabo, e engloba plataformas online como o Fumaça ou o Observador. Não entrando pelo rigor informativo, muito deste trabalho estaria vedado dependendo do ditador que tivéssemos ao leme.
Em segundo lugar, as políticas económicas e sociais, que vão desde a criação do Serviço Nacional de Saúde, à adesão à União Europeia. As reformas educativas que viram o analfabetismo crónico – essencial para o sustento de um regime fascista – a ser reduzido para mínimos históricos.
Temos depois um par de dimensões que se têm atribuído enquanto falhas da democracia. A primeira costuma ser económica, com as carpideiras do PIB a lamentar como a economia não cresceu, enquanto comparam Portugal e países que fizeram parte do mundo soviético. Não considero que seja uma falha, pois nunca fez parte da proposta. O regime fascista não caiu porque não havia crescimento económico. E se olhamos para a China, e reconhecemos o enorme vácuo de democracia que mancha as conquistas económicas que tem conseguido, não devemos alinhar na troca de liberdades por um maior PIB.
A segunda tem a ver com corrupção, e com a impunidade que muitos percecionam por entre as elites financeiras e políticas. Os mesmos, em muitos casos, que resistem a regras mais apertadas em leis de fuga ao fisco, paraísos fiscais, e enriquecimento injustificado. Remetendo ao caso Marquês, um ex-Primeiro Ministro está acusado e será julgado (e, tudo indica, culpado) por 6 crimes. Algo que nunca aconteceria em fascismo. Da mesma forma, e apesar de ter sido um caso julgado nas televisões durante anos, não foi a perceção que determinou o veredicto, mas sim a lei. Algo que também acabaria de forma diferente. Finalmente, o Ministério Público recorrerá dos crimes não imputados a uma segunda instância, de forma a envolver outros juízes e interpretações e reduzir a vulnerabilidade do sistema. Tal como se pretende. Muito há a fazer, sem dúvida, para melhorar a Justiça em Portugal. Mas devemos resistir àquilo que não passa de tentativas de fazer parecer que existem intocáveis.
Ficou, no entanto, realmente por cumprir a igualdade de oportunidades entre cidadãos independentemente do berço onde nascem. É inegável que o sítio onde nascemos, o nosso género, a nossa racialidade contribuem para a classe social a que pertencemos e podemos almejar a pertencer. É por isto que, de tudo o que Abril prometeu, falta cumprir o socialismo.
Pedro Castro
Co-fundador, membro da Equipa Editorial e um perigoso esquerdalho, nas palavras dos seus conhecidos. Interessado em Política, Economia, e Educação.