“Tudo dá errado há muito tempo, Raago. não te preocupes, depois a gente dá um jeito, este é o modo angolano de ir fazendo as coisas, se fizéssemos logo tudo bem havia inúmeras desvantagens, primeiro parecia que o trabalho era fácil e rápido, depois não tínhamos hipótese de brilhar com as correções, entendes?”
Do poeta e escritor angolano Ondjaki, vencedor do prémio Saramago, Os Transparentes é o retrato de um país corrompido desde as suas raízes mais profundas.
Com sarcasmo e ironia afiada como uma lâmina mas cuja realidade apenas permite um sorriso triste antes de o sofrimento nos afogar o peito, os personagens deste livro, bastante pautado pelo denominado realismo mágico que tanto encontramos em Garcia Marquez, são frequentemente identificados não por um nome mas por características próprias que os tornam inconfundíveis.
Se ter um nome é pedir muito numa sociedade que decidiu ignorar os sem poder, a sobrevivência essa também não lhes é dada de mão beijada nunca.
Os personagens ganham uma profundidade e complexidade que advém da sua relação com a sua terra e com as pessoas que fazem parte da sua vida, são definidos pelo contexto. É essa constante de trocas entre vizinhos de um mesmo prédio, essa partilha de dissabores e pequenas conquistas que fazem ganhar o dia que definem a personalidade de cada um e nos fazem mergulhar em todas as facetas em que Angola lhes é devedora.
O retrato vívido de Angola faz-nos viajar para o contexto de pós-guerra com todas as especificidades que isso inclui. Quer no que toca ao regime democrático, a súbita importância do petróleo, o aclamado progresso tão mal disfarçado de pobreza, divisão social e corrupção generalizada e sem vergonha.
Ondjaki toca na ferida sem se deixar levar por sentimentalismos e no entanto, todo o livro é uma avalanche de emoções contidas porque contidas têm de ser se o dia que se segue tem que ser arrancado a ferros.
Essa perspectiva de que tudo roda à volta do dinheiro é bem patente nos episódios que constituem a obra, quer na sátira política e nos homens todos poderosos e que tudo podem, quer no dia à dia de quem faz o que pode com o que se tem.
Esse desenrasca que o autor retrata com tanta leveza que por vezes nos faz até esquecer a miséria por detrás, cria uma empatia com estas pessoas e com a sua luta diária e com a capacidade de ser minimamente feliz com nada.
Diria que foi fácil de simpatizar com personagens tão cheios de fraquezas e imperfeições, sobretudo quando a estratégia do desenrasca fica assente como a única força possível de sobrevivência de um povo a que lhes foi tirado tudo. Os constantes esquemas, pequenos e grandes, são o modus vivendi tanto dos pobres negligenciados como do próprio Governo.
Não raras vezes dei por mim a rir em voz alta para parágrafos a seguir ter lágrimas a correr-me pelo rosto.
Uma peça de prosa que sabe sem dúvida a poesia , um livro carregado de simbolismo e de descrições profundamente sensoriais, onde o desespero e a pobreza fazem até os corpos desaparecer. Onde a indiferença aliada à irrevogável ideia de que não existe saída, confirma o facto de que em pleno século XX existem pessoas transparentes.
Beatriz Burnay de Mendonça
Olá, o meu nome é Beatriz e estas duas linhas servem o propósito de me fazer parecer melhor do que realmente sou.
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