O Trovador da Melancolia
“I love to speak with Leonard,
He’s a sportsman and a shepherd,
He’s a lazy bastard
Living in a suit.”
Going Home, 2012
Já lá vão quase cinco anos desde que ousei escrever fosse o que fosse sobre o grande bardo Leonard Cohen. Foi em 2016, na já extinta NovaPress (publicação da Associação de Estudantes da Nova SBE e que o meu caro Tomás Branco Gonçalves me deixou coordenar).
Nesse artigo, intitulado “Closing Time”, tentava não só despedir-me de alguém que muito marcou o meu gosto pela música e escrita, como também despertar o interesse de quem me lia na altura – uma geração menos exposta a Leonard Cohen – para a obra de um homem que foi de tudo um pouco, desde poeta depressivo a compositor de baladas, de trovador a monge budista, de homem falido a edil da torre da canção.
Ao longo da vida, Leonard Cohen foi tudo menos perfeito e isso refletia-se em tudo o que fazia, desde a sua escrita, à forma como fazia uso do seu sentido de humor, repleto de ironia, para relatar momentos da sua vida (como a perda dos direitos de uma das canções mais bonitas que compôs), ou fazer troça da sua voz imperfeita (“I was born like this, I had no choice, I was born with the gift of a golden voice”).
Cohen não tinha quaisquer problemas em expor todas as suas fragilidades, defeitos e angústias em formato de canção, sempre munido de uma escrita simples e evocativa, de uma humildade desarmante e do seu barítono enrouquecido pelo tempo. A sua canção mais reconhecível (apesar de muitos não saberem que é Cohen o autor) é, talvez, o exemplo perfeito disso – um hino, uma quasi-oração, a um relacionamento condenado ao fracasso, com uma mulher que “não quer saber da música”, com a evocação de personagens bíblicas com o Rei David, Betsabé, Sansão e Dalila, e a descrição de um jogo de humilhação, tortura, falhanços e sexo – temas transversais à obra de Cohen e esmiuçados nos 80 versos compostos originalmente (nem todos foram utilizados na versão de estúdio, mas eram alternadamente usados em concertos e nas versões de outros artistas).
Apesar de ser o poeta, peregrino e embaixador-mor da melancolia e do pessimismo para uma geração de jovens angustiados, Cohen nunca se deixou consumir por completo pela escuridão (“There is a crack in everything, that’s how the light gets in”), mesmo durante os períodos mais difíceis. “Depression has often been the general background of my daily life. My feeling is that whatever I did was despite that, not because of it. It wasn’t the depression that was the engine of my work. That was just the sea I swam in,” confessou Cohen ao jornalista Mikal Gilmore.
Isenção não é um atributo que consiga dominar quando falo de Leonard Cohen. Não se trata apenas de um dos meus cantautores favoritos. Cohen faz, na minha humilde opinião, parte de um trio de gigantes do cancioneiro anglófono, do qual fazem parte também Bob Dylan e Johnny Cash. Esse trio, por sua vez, serviu de referência para a obra de outros cantautores que se seguiram, como Tom Waits, Patti Smith, Nick Cave, Joni Mitchell, Bruce Springsteen e Mark Knopfler, entre muitos outros. A influência de Cohen atravessa as fronteiras de género, sendo mesmo citado por Kurt Cobain, na música Pennyroyal Tea.
Muito há a dizer sobre Leonard Cohen, um homem imperfeito, cheio de fragilidades e cuja vida sempre me fascinou – desde o período em que fez parte da comunidade de artistas exilados em Hydra (como George Johnston, Charmian Clift ou Axel Jensen) ao exílio espiritual de quase sete anos (quando a carreira estava mais uma vez em alta após vários anos de pouco sucesso), ao regresso à estrada aos 73 anos (depois de se ter descoberto que a sua agente, amiga e ex-amante tinha passada a última década a desviar o seu dinheiro).
Leonard Cohen é um exemplo da força de espírito, que leva uma pessoa a levantar-se após cada queda, e de um brilhantismo ímpar, manifestado sobretudo, mas não só na escrita, e aliado a uma humildade e capacidade de humor introspetivo e auto-depreciativo desarmante.
Apesar de a sua voz se ter ressentido com o passar dos anos, Leonard Cohen melhorou com o tempo, algo demonstrado pelos álbuns que se seguiram ao regresso do exílio espiritual e pelos registos do regresso à estrada, entre 2008 e 2012 – nomeadamente os álbuns Live in London, Songs from the Road e Live in Dublin, e que fui espalhando ao longo deste texto. Não me é nada fácil fazer uma lista de sugestões de canções de Leonard Cohen, por facilmente me descontrolar e entrar na casa das dezenas. Aliás, ao longo dos últimos dez parágrafos consegui nunca referir algumas que adoro, como Famous Blue Raincoat (mais um testamento a relacionamentos à beira da morte e à infidelidade), Paper Thin Hotel, (um momento transcendente de pura resignação), One of Us Cannot Be Wrong (uma hino à adoração) e Take This Waltz (confesso que nesta nem eu consigo explicar a razão para adorar, talvez a capacidade evocativa).
Leonard Cohen deixou-nos aos 82 anos, tendo vivido uma vida repleta de experiências e emoções, com o seu canto de cisne a surgir três anos após a sua morte (na forma do álbum Thanks For The Dance). Não sei se existem formas melhores ou piores de despedida, mas confesso que a mim pareceria sempre uma despedida precoce, e qualquer que fosse a forma de despedida, a mesma nunca seria a forma apropriada de dizer adeus.
“I love to speak with Leonard,
He’s a sportsman and a shepherd,
He’s a lazy bastard
Living in a suit.”
If It Be Your Will, 1984
João De Almeida
Co-fundador, membro da Equipa Editorial e um dos "pseudo-especialistas em nada" que opinam na Enciclopédia Portuguesa de Microassuntos. Como interesses tem: Política, Economia, Comida, Música e sobretudo coisas parvas.
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