Orçamento do Estado de 2022: Será Suficiente?

‘Café Central’ Económico é uma rubrica escrita por jovens economistas que pretendem explicar de forma simples as complexidades da ciência económica. Com este exercício, os autores pretendem libertar-se dos jargões da economia quando querem falar de problemas económicos como se tivessem no ‘Café Central’ da freguesia.

Quinzenalmente publicados em Metrónomo, a quem os autores muito agradecem a gentileza de lhes ser concedido este espaço de expressão livre de ideias, os textos são uma colaboração entre João Quelhas, Tiago Bernardino, e Diogo Lima, outrora separados pela dicotomia clássica professor-alunos, mas que hoje discutem frequentemente uma variedade de temas, desde a economia teórica à(s) política(s) do passado e do presente.

No passado dia 20 de maio de 2022, teve lugar a Conferência Anual da Ordem dos Economistas, organizada em parceria com o Institute of Public Policy (IPP) e com o apoio do Banco de Portugal, na Culturgest. A mesma contou com a participação do Ministro das Finanças, Fernando Medina e com um painel constituído por Paulo Trigo Pereira, presidente do IPP, Hélder Reis, assessor económico do Presidente da República, Jamila Madeira, deputada da Assembleia da República e Joaquim Miranda Sarmento, também, deputado à Assembleia da República. Além disso, terminou com uma intervenção do Governador do Banco de Portugal, Mário Centeno.

Neste artigo, apresentamos algumas considerações relativas ao Orçamento do Estado de 2022, aprovado em Assembleia da República, no passado dia 27 de maio. Daremos especial atenção ao défice orçamental e à dívida pública portuguesa, tendo em conta o contexto macroeconómico atual de grande instabilidade. No próximo artigo, investigaremos a evolução do investimento público em Portugal, igualmente, uma variável de grande importância na análise do Orçamento.

Enquadramento Económico

Nas últimas semanas, têm sido várias as projeções feitas por diferentes instituições relativamente à evolução da economia portuguesa, quer ao nível do produto interno bruto quer da taxa de inflação. De acordo com o Boletim Económico de Março de 2022 do Banco de Portugal [1], “o Produto Interno Bruto (PIB) cresce 4.9% em 2022 (4.9% em 2021) e converge nos anos subsequentes para taxas mais próximas do ritmo estimado de crescimento de longo prazo”, com valores de 2.9% em 2023 e 2.0% em 2024. Quanto à inflação, o Banco de Portugal prevê que esta aumente em 2022 para 4.0% e caia para 1.6% em 2023 e 2024. Além disso, o Fundo Monetário Internacional estimou, para 2022, um crescimento de 4.5% do PIB e uma taxa de desemprego que se deverá situar nos 6%. As estimativas da Comissão Europeia, por outro lado, sobrestimam o crescimento do produto (5.8%) e subestimam a evolução da inflação (3.7%) para 2022. Dada a incerteza que se tem sentido nos domínios da saúde, da geopolítica e das políticas económicas, a grande variabilidade das estimativas é expectável, contudo todas apontam para um crescimento nominal robusto e um sobreaquecimento da economia durante o presente ano.

Como esta evolução a generalizar-se pela área euro, ainda que em diferentes magnitudes de país para país, o Banco Central Europeu deverá dar início a uma subida gradual das taxas de juro de curto prazo, que deverão atingir valores positivos já em 2023. Esta subida deve-se à evolução dos preços cada vez mais íngreme, sendo que a taxa de inflação tem registado valores que não se viam há décadas nos países europeus (sobretudo, em Espanha, com 9.8% em março). O aumento das taxas de juro de referência significa que a taxa de juro implícita na dívida pública portuguesa, que é calculada através do rácio entre o valor dos juros do ano e o valor do stock da dívida do ano transato, se situará nos 2%, o que representa um ligeiro aumento desde 2021 (1.9%). No entanto, este valor poderá vir a agravar-se significativamente nos próximos meses.

Orçamento do Estado

O Orçamento do Estado é um “instrumento de gestão que contém uma previsão discriminada das receitas e despesas do Estado … [e] é da iniciativa exclusiva do Governo” [2]. É, por isso, crucial na definição da política orçamental seguida por um país, em cada ano, e ajuda os economistas a perceber se está planeada alguma alteração discricionária de política, como por exemplo, um corte nos impostos pagos pelos cidadãos ou um incremento do investimento público em infraestruturas ou em educação. Como tal, este documento é de extrema relevância para todo o tecido económico já que impacta a vida das famílias e das empresas e pode contribuir de forma expansionista ou restritiva para o ciclo da economia. Para o ano de 2022, o Governo prevê um aumento quer das receitas quer das despesas públicas, de acordo com os valores orçamentados.

Analisando primeiro as receitas, devemos começar por observar a evolução da carga fiscal já que grande parte das receitas é composta por impostos diretos e indiretos e contribuições de Segurança Social (80%, aproximadamente). Na Conferência foram apresentadas previsões produzidas pelo IPP, no âmbito do Budget Watch 2022, onde é salientado que a receita fiscal prevista no Orçamento está subestimada uma vez que “a variação do PIB será provavelmente maior do que o previsto”. Por trás desta explicação estão os estabilizadores automáticos. Estes incluem variáveis orçamentais que reagem automaticamente ao ciclo económico. Assim, mesmo sem nenhuma alteração discricionária na política orçamental, o saldo orçamental melhora em anos em que o produto e o rendimento crescem uma vez que a base coletável de impostos é superior e, portanto, o total de receitas aumenta. O inverso acontece em recessões com a quebra do rendimento e, por conseguinte, das receitas públicas. O mesmo conceito se aplica, também, à evolução das despesas públicas. O valor dos subsídios de desemprego pagos depende do número de desempregados em cada ano, que varia positiva ou negativamente conforme o ciclo económico.

Do lado das despesas, o Estado emprega os seus recursos em diversos domínios da sociedade, de forma a cumprir o seu papel intervencionista. Estes incluem a saúde, a educação, a segurança ou a preservação do território, entre outros. As transferências correntes para as famílias, das quais fazem parte as pensões, constituem a maior fatia das despesas (48%). Depois, seguem-se as despesas com os funcionários públicos (20%) e a aquisição de bens e serviços (13%). Uma fatia de menor dimensão, mas com grande importância, é o pagamento de juros e outros encargos (7%), que poderá aumentar com um agravamento das condições de financiamento da dívida pública. O IPP prevê que a importância do Estado na economia, medida pelo rácio de despesas públicas sobre o produto, diminua de 48.1% em 2021 para 46.6% em 2022. Esta evolução poderá considerar-se expectável dada a diminuição das despesas de Saúde e de apoio às empresas no âmbito da resposta à crise pandémica no corrente ano. Além disso, resulta também de uma atualização salarial de apenas 0.9% para os salários e remunerações aos trabalhadores em funções públicas.

Figura 1 – Saldo Orçamental das Administrações Públicas. Fonte: IPP.

A confirmar-se o previsto no Orçamento de Estado, o saldo orçamental, ou seja, a diferença entre receitas e despesas da Administração Pública, irá permanecer em terreno negativo (a estimativa de 2021 é de -2.8% do PIB e a de 2022 é de -1.9%), como se verifica na Figura 1. De notar que este saldo resulta da soma dos saldos do Estado (Administração Central, -3.1%, e da Segurança Social, +1.2%) e da Administração Regional e Local (0%). Esta evolução traduz-se, assim, numa necessidade de financiamento das Administração Pública.

Dívida Pública

A dívida pública mede o endividamento da Administração Pública do país e, com a necessidade de financiamento mencionada, é de esperar que este stock se agrave em 2022. Mas isto pode não ser um problema para a economia. Se o nível de endividamento for sustentável, ou seja, se o Governo tiver capacidade de no futuro registar saldos orçamentais que permitam amortizar a dívida, não enfrentará o risco de insolvência. Para analisar a sustentabilidade da dívida pública de um país, os economistas consideram o peso que o stock de dívida pública tem no PIB do país. A dinâmica deste rácio da dívida pública é determinada por três fatores: o efeito dinâmico, que reflete a variação anual do rácio explicado pela diferença entre a taxa de juro nominal implícita (r) e o crescimento nominal do PIB (g); o saldo orçamental primário, onde estão as receitas e as despesas públicas; e outros efeitos que incluem ajustamentos da dívida pública.

Pode-se concluir que a sustentabilidade da dívida pública depende, então, do trinómio: défice orçamental primário, crescimento nominal do PIB e taxa de juro nominal implícita na dívida. Como tal, no caso de um saldo orçamental nulo, quando o diferencial entre a taxa de juro nominal e o crescimento do PIB nominal é negativo, o efeito dinâmico contribui para uma diminuição do rácio da dívida no produto, promovendo a sustentabilidade da mesma.

Figura 2 – Diferencial entre Taxa de Juro Nominal Implícita e Taxa de Variação do PIB Nominal. Fonte: Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) e Banco de Portugal.

Como se pode verificar na Figura 2, em 2021, o crescimento nominal da economia superou a taxa de juro nominal implícita, tendo esta componente contribuído negativamente para a evolução do rácio. De acordo com as previsões apresentadas, a mesma situação acontecerá no ano de 2022, o que abre espaço para que, mesmo com um saldo orçamental negativo, o rácio permaneça estável.
Como defendeu o governador do Banco de Portugal na Conferência, será “crítico retomar um crescimento nominal superior à taxa de juro nominal” no médio e longo prazo de forma a garantir a sustentabilidade da dívida pública. Este será um dos desafios que o Governo terá de enfrentar na sua legislatura até 2026, num contexto de subida das taxas de juro definidas pelo BCE e de agravamento das condições de financiamento, como mencionado acima.

Considerações Finais

O Orçamento do Estado de 2022 surgiu num contexto conturbado, quer a nível interno quer externo. Foi o primeiro orçamento reprovado pelo Parlamento, acontecimento que conduziu Portugal para uma crise política e para eleições legislativas antecipadas. Com o reforço da confiança dos portugueses no governo de António Costa, este apresentou uma versão do Orçamento semelhante à inicial. Contudo, muita coisa mudou entre setembro de 2021, data da elaboração do mesmo, e maio de 2022, data da sua aprovação. O mundo continua a lidar com uma crise pandémica e, em cima disso, a Europa sofre com a guerra na Ucrânia. Todos estes eventos contribuíram para um enquadramento económico que apresenta diversos riscos e desafios para as famílias e as empresas: um aumento do custo de vida, um aumento do preço das matérias-primas e dos bens de produção que se reflete em toda a cadeia de valor, e um agravamento, em perspetiva, das condições de financiamento.

Não obstante a incerteza sentida, o Governo fruiu de condições únicas para suportar a economia e preparar a estratégia para o mandato que se inicia. Em primeiro lugar, o crescimento nominal do PIB acelerou devido à recuperação da economia depois da forte queda em 2020 e ao aumento generalizado dos preços. Isto faz com que o efeito dinâmico no rácio da dívida pública seja bastante favorável. Em segundo lugar, devido ao efeito dos estabilizadores automáticos, a receita fiscal irá aumentar no corrente ano, mesmo sem um aumento das taxas de imposto, o que leva a uma melhoria do saldo orçamental. Por fim, os limites orçamentais definidos pela União Europeia no Pacto de Estabilidade e Crescimento, que impõem um saldo orçamental inferior a 3%, estão suspensos, ou seja, existe espaço de manobra para acumular um défice superior sem detrimento da sustentabilidade da dívida pública.

O forte contraste entre a situação atual vivida pelas famílias e as empresas e o contexto orçamental apresentado levanta a dúvida se as políticas que estão presentes no Orçamento de Estado de 2022 serão suficientes. Serão suficientes, no curto prazo, para apoiar as famílias, cujos salários se têm mantido estagnados, ou as empresas, que continuam com uma carga fiscal elevada? Serão suficientes, no longo prazo, construindo bases para um aumento da competitividade da economia, que a permita crescer de forma sustentada e robusta durante a próxima década?

© parlamento.pt
João Quelhas

Aspirante a economista já que passou os últimos anos a estudar modelos e a otimizar escolhas. Com particular interesse por macroeconomia e o fascinante mundo dos mercados financeiros. Como um bom nortenho, adora boas conversas acompanhadas de uma francesinha e de vários finos. Mas também faz desporto sempre que está sol.

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